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Zona de Interesse

CRÍTICA

Guilherme Milek

O cinema nunca esteve nos campos de concentração alemães. Não existem imagens do evento histórico e nenhum diretor jamais teve acesso a essa realidade, que hoje existe apenas como dados históricos, relatos, algumas fotografias e a memória de seus sobreviventes. Ainda assim, o imaginário coletivo dos horrores do holocausto foi criado através do cinema, que desde a Segunda Guerra Mundial tem encenado de diferentes formas um genocídio que ninguém além das vítimas testemunhou. Esse fato sempre gerou uma forte discussão moral sobre como se filmar o holocausto: no início da década de 1960, Jacques Rivette escreveu, para a revista francesa Cahièrs du Cinema, o texto Da Abjeção, onde criticava duramente Gillo Pontecorvo e sua direção no longa-metragem Kapò por, dentre outras coisas, usar o travelling para filmar a morte de uma vítima. Para Rivette, essa representação de uma catástrofe através de um espetáculo tolerável, agradável de se assistir, resumia-se ao entretenimento.

Esse problema formal tem sido motivo de discussões desde então. Afinal, como encenar algo tão violento, cruel e desumano através de técnicas cinematográficas que embelezam, entretêm, humanizam, dramatizam e, frequentemente, individualizam um genocídio sistêmico? Inúmeros diretores têm tentado ao longo das décadas responder a questão numa tentativa de filmar o horror de forma ética. Um deles foi Steven Spielberg em A Lista de Schindler (1991), que à época afirmou ter se livrado de todas as suas ferramentas técnicas usuais para gravar o filme de maneira respeitosa. O que não é verdade, uma vez que ele utilizou de montagem paralela, elipses, colorização e inúmeras outras ferramentas na construção de uma mise-en-scène que era agradável de se assistir apesar de sua tristeza exacerbada. A falsa não-dramatização de Spielberg se provou certeira. O longa se tornou um sucesso comercial, um exemplo de drama comovente para crítica e público e vencedor de 7 Oscars, incluindo Melhor Filme.

O mais novo diretor a tentar resolver o problema da forma é Jonathan Glazer. O britânico, diretor de apenas 4 filmes nas últimas 3 décadas, não lançava um projeto desde Sob a Pele, de 2013, passando a última década produzindo Zona de Interesse, baseado no livro de mesmo nome escrito por Martin Amis. A ideia era radicalizar, extrair o máximo possível de noções de plot, encenação dramática e imagens espetaculares, recusando-se a sequer encenar a vida no campo de Auschwitz. Glazer, então, cria no lugar um dispositivo que transfere sua mise-en-scène para a casa ao lado do campo de concentração, onde moram seu comandante e família, assim utilizando somente o som vindo dos campos para trazer à tona o horror que acontece.

Em essência, é um projeto onde o diretor responde se é ao menos possível filmar um longa que retrata todo aquele horror sem transformá-lo em algo tolerável ou agradável pelo uso das técnicas comuns da arte. Acontece que sim, é possível: sua excelência técnica Kubrickiana é impressionante, mas cria imagens sempre frias, distantes, dramaticamente inertes, com planos que retratam seus atores quase sempre de longe, de lado, não os permitindo humanidade. Seus diálogos são técnicos, robóticos, sem emoção. Sua narrativa é esvaziada de tensão, humor, alegria ou tristeza. Sua trilha sonora é rara e sempre incômoda, monstruosa. Em contraponto, o som das atrocidades que acontecem ao lado é seco, angustiante, por vezes incessante, atormentador de se ouvir diante da normalidade do que vemos. Nem tudo funciona, alguns momentos ainda contêm, inevitavelmente, resquícios de dramatização, inclusive pelas raras intromissões da trilha. Contudo, no geral, é um projeto altamente eficiente em comprovar a possibilidade de oposição ao filme comum sobre o holocausto e de criar angústia por algo que sabemos mas nunca vemos.

Dito isso, um filme não se faz apenas enquanto resposta a uma problemática sobre como filmar. O recurso de disparidade entre a imagem cotidianamente banal e o som que atormenta serve para criar uma ideia sobre a facilidade que seres humanos podem conviver com a violência. Uma ideia sobre cumplicidade a um sistema que destroi e desumaniza, ou seja, a tão falada “banalidade do mal”. Um termo, vale dizer, usado de forma calculada pelo marketing do filme desde a estreia do longa no Festival de Cannes de 2023. Porém, reduzir o longa a isso é tolice, já que ele é acima disso um filme memória. Zona de Interesse eventualmente chega ao presente mostrando o que sobrou de Auschwitz e suas paredes que mostram as marcas da violência. O impasse é que essa encenação da memória do espaço é curta o suficiente para deixar a impressão de que existem trabalhos documentais mais efetivos nesse sentido, e a ideia que ele constroi sobre a banalidade do mal nunca passa de um apontamento.

Glazer não discute diretamente sobre nada a partir do apontamento dessa banalidade. Sim, ela é chocante e incômoda de se ver, mas onde entra a personalidade e a reflexão do autor sobre os fatos que ele aponta para além da óbvia monstruosidade dos acontecimentos? Se o intuito era que o espectador refletisse por conta própria sobre essa questão que o filme repete ao longo de 100 minutos, um problema maior surge. Estamos testemunhando um genocídio nesse exato momento contra o povo Palestino, e dessa vez ele é televisionado. Consigo abrir qualquer rede social e ter acesso à imagens ao vivo de explosões, de corpos dilacerados, de vidas perdidas. Consigo ligar a televisão e perceber a disputa de narrativas que distorcem e, vejam só, banalizam a tragédia em tempo real em jogos políticos globais. Consigo perceber nos comentários na TV, nas redes, nos círculos sociais a apatia, a falta de humanidade, a conivência das pessoas em testemunhar o apagamento étnico de uma nação para se preocuparem com futilidades cotidianas.

Não é um problema do filme mais precisamente, e sim de timing. Entretanto, todo filme existe em um contexto histórico e a realidade material é que Zona de Interesse foi lançado durante um extermínio onde toda a preocupação com ética deixa de ser sobre encenação ficcional e passa a ser sobre a exploração da imagem de vítimas em tempo real. Onde a memória não precisa ser construída de fato, pois sua banalidade está estampada em todo jornal diariamente. O momento é tão ruim que, para ser honesto, chega a ser difícil se horrorizar com o som do filme já estando tão dessensibilizado com o som real de gritos e súplicas que saem do celular. O apontamento que Glazer evidencia é sim relevante, sem prever que algo assim aconteceria, ele te leva a pensar na banalidade que ocorre atualmente no Oriente Médio ao contrário da Europa dos anos 40, e isso também é valoroso. Ao mesmo passo, é um projeto parcialmente esvaziado de sentido ao retratar uma situação que já não cabe no presente globalizado e altamente tecnológico. Encenar questões morais e éticas que são essenciais à história do cinema e sua relação com o nazismo é insuficiente para compreender a realidade atual em que vivemos, ainda que haja elementos em comum.

É exigir demais de um filme? Com certeza, mas a distância que Glazer toma na sua visão de como filmar o holocausto acaba colidindo frontalmente com um genocídio espetacularizado que continua a ocorrer no momento exato da escrita desse texto. Esse extermínio abre um diálogo com o filme que ninguém poderia prever, mas que existe e não pode ser ignorado, pois novas questões morais e éticas sobre o tema estão surgindo e Zona de Interesse não é capaz de fornecer nenhuma ideia sobre eles. Seus apontamentos, embora necessários, fazem muito mais sentido em um contexto consideravelmente diferente. É um filme interessante por abrir a possibilidade de discussão, mesmo que seja sobre sua incapacidade de ser a mensagem de alerta que ele se propõe a ser frente à nova realidade. Infelizmente, mesmo assim, acaba sendo uma experiência frustrante. No fim das contas, ele talvez seja mais relevante enquanto tese cinematográfica sobre encenações éticas de tragédias históricas do que como um lembrete sobre totalitarismo, o que, enquanto retrato de um genocídio, me parece tão infeliz quanto à espetacularização daqueles que Glazer se opõe.

Zona de Interesse

16/02/2024 - Por Guilherme Milek (Revisado por Brenno Franca)

Direção

Jonathan Glazer

Elenco

Christian Friedel, Sandra Hüller, Johann Karthaus, Luis Noah Witte, Nele Ahrensmeier, Lilli Falk, Anastazja Drobniak

Roteiro

Martin Amis, Jonathan Glazer

Ficha Técnica

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