Priscilla
CRÍTICA
Sofia Coppola tem um talento especial para retratar o tédio de jovens mulheres ricas e, sendo assim, não é de todo surpreendente que a vida de Priscilla Presley fosse um ponto de interesse para ela. A surpresa talvez seja que, num ano onde existe um filme literal da Barbie saindo das amarras sociais, esse seja o filme mais bem resolvido sobre uma boneca se libertando da sua casa dos sonhos.
As biopics já se tornaram um subgênero saturado, que não cansa de encenar o mesmo greatest hits de ascensão e queda com os momentos mais interessantes da vida de seus ídolos. Já os resultados variam entre o medíocre (Bohemian Rhapsody, 2018) e o surpreendente (Rocketman, 2019). Mas a grande diferença de Priscilla é que ele aborda a vida de uma pessoa que sempre esteve à sombra de outra, que ficou conhecida por ser vítima de um homem problemático ou troféu de um homem genial (a depender do quão fã do Elvis você seja), e não muito como um ser humano.
Coppola se arma dessa percepção pública de sua personagem e a transforma no trunfo de seu longa: se ninguém conhece toda a história de vida dessa mulher para além de seu marido, é possível fazer um recorte temporal bem mais específico e definir uma temática que humaniza a personagem. Assim, o longa deixa de ser simplesmente sobre como essa mulher viveu com Elvis Presley, mas de como ela ganhou agência de seu próprio corpo e história. Em essência, é um filme que desconstrói dois mitos: o dessa mulher resumida a um homem, e o do homem em si.
Diferente do filme de Baz Luhrmann (Elvis, 2022), que terceirizava o comportamento errático do cantor para seu empresário, o que vemos aqui é um Elvis profundamente mal resolvido e sem controle da própria vida. Obcecado em controlar a esposa como forma de compensação, como se ela fosse um troféu imaculado, quase santificado. Se no imaginário popular se criou o mito de um Elvis sensual, com quadris que levavam o público feminino ao delírio, o retrato íntimo aqui é de um cantor frígido, incapaz de se relacionar sexualmente com uma mulher que o conheça de fato.
Priscilla aqui não é esse mito de esposa troféu na sombra de um gênio, ela é uma mulher que tem seus próprios gostos, que quer se divertir, trabalhar, conhecer o mundo, transar, mas que é sempre impedida. Há vários momentos no filme onde Priscilla tenta iniciar uma relação sexual com Elvis, que transa com outras mulheres que “não servem para ele”, mas que sempre se recusa a transar com sua esposa, a impedindo de ter satisfação enquanto mulher.
Sabemos as histórias sobre como Elvis controlava as roupas, o cabelo, as maquiagens de Priscilla, mas é no sexo que Sofia Coppola encontra a representação máxima de uma personagem que era negada enquanto ser humano. Sua persona não era tão diferente de uma mobília, estava ali para embelezar a casa e potencializar a imagem pública de Elvis, sendo reprimida quando tentava ser humana e fugir desse papel artificial.
A diretora evita inserir uma visão anacrônica no filme com relação à veracidade dos sentimentos da personagem e sua história - mesmo em seus momentos mais repreensíveis como a diferença de idade, o que exige coragem. Assim, Coppola deixa evidente que a vida daquela boneca linda e vazia ao lado do marido popstar estava destinada ao fracasso.
O filme retrata de forma simples, mas empolgado, um fato constantemente esquecido por um mundo que nunca deixou de associar Priscilla a Elvis: enquanto um entrou em decadência até o fim de sua vida, a outra está viva e bem. O declínio do homem controlador foi o despertar da mulher, a oportunidade de viver todas as experiências que sempre foram negadas à ela, e é essa a imagem de Priscilla que o filme constrói em última instância.
Não deixa de ser interessante que o ponto de ruptura para essa relação, que é retratada como amor verdadeiro até o fim seja, também, pelo sexo. Após ser negada por décadas, Priscilla se vê com um marido tentando transar com ela por prazer pela primeira vez. Claro, é num ato de pura vaidade para provar que ainda é “homem”, e ela finalmente nega suas investidas. Priscilla toma para si o controle da situação e é responsável por negar o sexo pela primeira vez.
À essa altura, longe do marido, ela já era uma mulher completa que estava vivendo sua vida de forma autêntica, divertindo-se com amigos, passeando, aprendendo técnicas de luta, mas ainda sem total controle do próprio corpo. Era evidente para Priscilla que não fazia mais sentido estar com um homem que a impossibilitava de ser tudo aquilo que ela já era longe dele. Decidir que não iria transar porque ela não queria era só o último passo nessa conquista da autonomia do próprio corpo, da própria vida.
Se o filme abre com os pés da protagonista se esfregando pelo tapete felpudo rosa como quem busca por algo firme em meio à tribulação, ele fecha com o rosto de uma mulher finalmente liberada por ela mesma. Agora, ela é capaz de decidir os rumos da própria vida e sair de dentro da casa de bonecas onde, por tantos anos, foi parte da decoração. Aquela Priscilla já não era mais nem a vítima nem o troféu que o mundo conhece, e sim um ser humano com sua própria vivência. Coppola decide não mostrar a sua personagem para além daquela libertação, deixando-a livre para ser ela mesma pela primeira vez, agora longe da imagem do homem que a assombrava, e finalmente, longe dos olhos do público.


Priscilla
19/01/2024 - Por Guilherme Milek (Revisado por Brenno Franca)
Direção
Sofia Coppola
Elenco
Cailee Spaeny, Jacob Elordi, Ari Cohen, Dagmara Dominczyk
Roteiro
Sofia Coppola
Ficha Técnica