O Menino e a Garça
CRÍTICA
Hayao Miyazaki, ícone lendário da animação japonesa, marca seu retorno com O Menino e a Garça, uma década após anunciar o que muitos acreditavam ser sua aposentadoria definitiva. Aos 82 anos, o aclamado diretor de A Viagem de Chihiro e Meu Amigo Totoro nos apresenta talvez seu filme mais pessoal, uma obra de beleza e detalhes fantásticos que explora temas familiares ao universo Ghibli. O filme está em produção desde 2016, quando Miyazaki disse que essa obra seria uma forma de ele dizer ao seu neto que ele estava se mudando para outro mundo.
Neste possível último ato de sua carreira, Miyazaki entrelaça a dor real de um jovem com uma história de fantasia sobre a transmissão de legados criativos. Situado na Tóquio dos anos 1940, o filme segue Mahito, um garoto de 12 anos que enfrenta a perda de sua mãe e as transformações em sua vida em um cenário de guerra. Esta ambientação, que se desdobra em reinos paralelos, revela um mundo vasto e sem limites, repleto de personagens e mitologias. A exploração do luto e a relação complexa de Miyazaki com os pássaros, incluindo a presença enigmática de uma garça cinza, são elementos centrais deste enredo. No entanto, a extensão ilimitada do mundo de fantasia, diferentemente dos espaços mais confinados de filmes anteriores, desafia a capacidade de imersão do espectador, ansiando por momentos de calmaria para uma conexão mais profunda com a riqueza interior do filme.
Este filme é uma meditação sobre família, perda e a busca por entendimento em meio ao caos da vida e da imaginação. Apesar de abordar temas desafiadores como luto e perda, o filme consegue oferecer momentos de pura magia e maravilhamento, mantendo-se fiel ao legado do diretor de apresentar histórias que transcendem a barreira da idade, sendo capaz de dialogar com todas as idades. A integração de elementos autobiográficos adiciona uma camada de intimidade e profundidade à narrativa, sendo feita de uma forma bastante sutil e apenas perceptível aos olhos de seus devotos fãs e adoradores de seu trabalho. É impossível também não citar o preciosismo técnico. Miyazaki trabalhou sem prazos, produzindo cerca de 1 minuto de animação por mês até a sua conclusão em um filme de 124 minutos. Aqui temos uma das sequências mais poderosas da carreira do diretor, quando Mahito sonha em resgatar sua mãe de um incêndio em Tokyo, um momento tecnicamente impecável e que me deu um nó na garganta.
O Menino e a Garça embora seja um testemunho da habilidade inigualável de Miyazaki em criar universos visuais deslumbrantes, luta para estabelecer uma ligação emocional sólida, criando muitas vezes um distanciamento entre obra e espectador. O filme me engajou muito no seu começo, apresentando um drama familiar em meio a uma guerra através dos olhos infantis de um garoto que precisa reaprender a viver em um novo contexto social. Sendo a jóia da coroa que acaba por fascinar no poderoso primeiro ato, o núcleo emocional acaba sendo obscurecido na entrada do mundo fantástico. O elemento fantástico, embora impressionante, sobrecarrega a narrativa sem oferecer os momentos de introspecção e simplicidade que marcaram as obras anteriores do diretor, como o íntimo Totoro ou envolvimento de Chihiro. Essa ausência de um núcleo emocional forte acaba impactando de forma negativa a construção de personagens coadjuvantes, como Natsuko, a segunda esposa do pai de Mahito e que acaba desempenhando uma importante função narrativa no mundo mágico, sem que seus conflitos ganhem algum desenvolvimento que tornem suas ações tão contraditórias críveis. Combinada com um ritmo por vezes arrastado mesmo com uma série de elementos mágicos sendo introduzidos sem oferecer nenhuma função narrativa, faz com que O Menino e a Garça não alcance o impacto emocional e a magia inerente às melhores obras de Miyazaki.
Apesar dessas críticas, O Menino e a Garça permanece uma obra de arte visualmente magnífica e narrativamente ambiciosa, uma adição valiosa à filmografia de Miyazaki. Ele oferece uma janela para a alma deste mestre contador de histórias, mesmo que não capture completamente a genialidade inefável de suas obras mais aclamadas. O Menino e a Garça pode não alcançar o panteão das obras-primas anteriores de Miyazaki, sua beleza, originalidade e a contemplação profunda sobre temas universais garantem seu lugar como uma peça digna de reflexão na trajetória deste icônico criador. Este filme se apresenta não apenas como um possível canto dos cisnes de Miyazaki, mas como um convite à reflexões existenciais sobre a natureza da arte, do legado e da capacidade humana de encontrar beleza e significado mesmo diante da adversidade.


O Menino e a Garça
11/03/2024 - Por Rafael Ribeiro (Revisado por Brenno Franca)
Direção
Hayao Miyazaki
Roteiro
Hayao Miyazaki
Ficha Técnica