Monster
CRÍTICA
“Existem três lados para toda história: o seu lado, o meu lado e a verdade. Ninguém está mentindo. É que memórias servem a cada um de maneira diferente.” – Robert Evans, produtor cinematográfico.
No cinema, é comum que diretores tenham marcas estilísticas e que as usem como recursos narrativos. Por vezes se valendo do falso exagerado, deixando claro ao espectador: ‘Sim, estamos em um filme. E eu quero que você saiba disso em todos os minutos dessa experiência.’ Às vezes, usando do naturalismo para deixar a história mais crua, na busca de causar uma identificação maior do público com as personagens e sentir suas dores - até mesmo fisicamente - quando uma tragédia acontece.
Em Monster, Hirokazu Kore-eda usa os dois recursos, mas não de maneira convencional. Com quês de suspense, somos apresentados à família Mugino. Saori (Sakura Ando) é mãe solteira de Minato (Soya Kurokawa) e a relação entre eles é leve, rotineira e ao que tudo indica, normal: ela trabalha, ele vai à escola e os dois conversam enquanto preparam o jantar. O pequeno apartamento, no segundo andar, serve de camarote para Saori e Minato presenciarem um evento que será o pilar temporal do filme: um prédio engolido por chamas no centro comercial.
A reação dos Mugino não é de espanto e nem de desespero. Saori brinca com o filho e torce para que os bombeiros acertem com os jatos de água para acabar o incêndio. A vida segue normalmente.
Quando Minato começa a aparecer com feridas pelo corpo ao voltar da escola, a preocupação de sua mãe é levada aos limites por acreditar que algo de errado está acontecendo com o seu filho. Ao partir em disparada para a escola e confrontar o corpo docente em busca de explicações, sentimos o desespero e impotência de uma mãe frente às formalidades exacerbadamente burocráticas e o tratamento clinicamente frio da equipe.
O roteiro do filme de Kore-eda brilha em momentos como esse: a pura emoção humana de frustração, que escala ao ponto do sangue ferver em um cenário tão ordinário como um espaço escolar. Ao crescer, somos inseridos em vários ambientes num sistema de mundo, criando nossas pequenas bolhas. Em cada uma delas, nos desenvolvemos e aprendemos tanto na vivência quanto no puro ato de observar a vivência alheia. Seja dentro de casa, com sua família, ou na escola, com os amigos e professores, desde muito jovens temos contato com diferentes posicionamentos, opiniões e histórias de vida. As bolhas vão estourando e os nossos diferentes mundos começam a colidir.
Monster insere o espectador nessa experiência: nos faz reviver os tempos de escola, com toda a confusão que só aquela idade pode trazer. A isso se soma o sentimento desesperador de pertencimento que permeia a trajetória humana desde o primeiro sopro de vida até o último suspiro – uma sensação que é amplificada quando se é parte de uma comunidade marginalizada socialmente.
Sob tal ótica, esse sentimento se torna ainda mais palpável quando somos arrastados pelos diferentes pontos de vista da história, entendendo o lado de cada um dos personagens e montando as peças de um complicado quebra-cabeça. Simultaneamente, é quando Kore-eda se vale dos dois recursos supracitados: usa a crueza de sua história e rebobina o rolo do filme diversas vezes, construindo uma narrativa não-linear que nos permite acompanhar outras trajetórias. É arriscado, mas aqui funciona: a curiosidade de descobrir o que está de fato acontecendo é grande demais para se permitir pensar em algo que não seja prestar atenção nas informações novas que vem à tona com cada personagem.
O ódio ao amor flui muito facilmente quando se tem a inocência como plano de fundo, e o filme toma para si essa definição quando traça perspectivas fragmentadas para seus personagens e então puxa o tapete do público, nos fazendo repensar o que havíamos visto. É um dispositivo bastante usado no cinema, mas empregado de forma desconcertante por Kore-eda. O diretor apresenta vários monstros dentro do seu longa, nos fazendo refletir se somos, também, um reflexo daquilo que estamos vendo em tela.
A graça de Monster é justamente esse ensaio: apontar os dedos e baixá-los rapidamente após determinadas cenas, rebobinando nosso raciocínio e seguindo para outra direção. Assim como os personagens, precisamos descobrir o que está acontecendo.
‘Quem é o monstro que está aí?’, perguntam as crianças durante o filme, como uma brincadeira boba. Em seu último ato brutal, no entanto, o diretor revela até que ponto monstros são criações sobrenaturais ou não. E dói justamente por isso: os monstros do mundo real estão presentes na vida de cada um, prontos para arrancar cada pedaço de inocência que ainda exista dentro de nós. Estão logo ali, ao dobrar a esquina. E sem ninguém para nos avisar.


Monster
30/01/2024 - Por Matteo Caputo (Revisado por Brenno Franca)
Direção
Hirokazu Kore-eda
Elenco
Soya Kurokawa, Sakura Ando, Eita Nagayama, Yūko Tanaka, Hinata Hiiragi, Mitsuki Takahata, Akihiro Kakuta
Roteiro
Yuji Sakamoto
Ficha Técnica