Indiana Jones e o Imperialismo Americano
ARTIGO


Indiana Jones e o Imperialismo Americano
15/02/2024 - Por Brenno Franca
Desde que o mundo é mundo e que, bom, o cinema existe, Hollywood segue um modus operandi aparentemente inofensivo, mas não menos assombroso: uma proposta de, filme a filme, roubar histórias e culturas não-brancas para a criação de um dos personagens mais white-saviors do cinema: Indiana Jones. Claro, o carisma de Harrison Ford é irrefutável e a direção de Steven Spielberg é, na maior parte, primorosa. Contudo, ainda cabe a mim olhar para esses filmes da única forma que me afetaram: através do olhar de um cinéfilo latino-americano.
O cinema, por si só, é uma criação capitalista. Por isso, é difícil se desvencilhar de seu aspecto industrial, quase fordista, de criação. O capitalismo também é expert na apropriação de narrativas, culturas, histórias, tradições, dentre outros, para criação de lucro. Nesse jogo tecnopolítico, ele transforma essas histórias em algo a ser vendido: seja o sonho americano, a diversidade de falsa representatividade, ou no caso de Indiana Jones, uma aventura pela história. O cinema nunca pode, de fato, retratar a realidade como ela é ou como ela foi. A câmera é objeto transformador da realidade que tenta captar e o filme, em si, já é outro produto transformado. E o que vende, então, esse produto de Jones?
A supremacia dos Estados Unidos. Entretanto, é necessário reforçar a forma que os Estados Unidos usa do cinema para vender seu sonho imperialista de maneira que o americano seja o único em poder de conhecimento, dos meios, da única forma de se viver. E todo o resto do mundo é recheado de potenciais inimigos. É através de seu capitalismo de garras fofinhas, que se adapta ferozmente, que usa de seu aparato imperialista para dissolver governos e políticas externas para seu bel prazer. Parece inútil pontuar tudo isso em 2024 sobre filmes que foram lançados há mais de quarenta anos e seria anacrônico para mim analisar eles a partir de uma ótica puramente atual. Mas como Indiana Jones entra nisso?
O arqueologista aventureiro de Spielberg primeiro se aventurou nas grandes telas nos anos 80, passando por sequências inspiradas e outras completamente deslocadas. Aqui, não tenho como proposta analisar friamente planos, atuações, trilhas, etc. Mas sim colocar em palavras meu incômodo. Ou como reescrever a história em torno de um salvador não apenas branco, mas em serviço à sua pátria — o que só é bem visto se forem os EUA — pode ser danoso à compreensão de eventos de grande escala.
Ainda assim, é de se compreender que em 84, ano de lançamento de Indiana Jones e o Templo da Perdição, não havia ainda um clamor tão forte (ao menos em Hollywood) para representação correta ou, ao menos desrespeitosa sobre culturas, vide a ridicularização profunda que Spielberg faz da Índia em Templo da Perdição. Ainda que seja um dos filmes mais divertidos da franquia, muito por causa de Ke Huy Quan brilhando como Short Round e a direção inspiradíssima de Spielberg nas cenas de ação, isso não impediu que Templo da Perdição fosse banido da Índia por sua caracterização estapafúrdia de culturas asiáticas. Já em Indiana Jones e a Última Cruzada (1989), Jones salva o mundo do Terceiro Reich e Hitler é derrotado por um americano que precisa abraçar sua fé cristã. Mesmo com seus tiques imperialistas, o melhor filme da franquia se sai muito melhor quando está atrás de símbolos e signos que são brancos, mesmo que as consequências sejam sentidas por outras etnias.
Esse é o meu ponto principal. Talvez o meu grande incômodo. A grande saga do maior arqueologista do cinema chega ao seu, até então, final com cansaço. A fadiga do tempo alcança o personagem de Harrison Ford, mas não lhe é oferecido o que o tempo tem de mais poderoso: a possibilidade de olhar para trás e aprender com os próprios erros. É exatamente isso que não acontece.
Em Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal (2008), o erro foi não apenas ignorar seus antecessores, mas calcar sua história num grand finale que já havia acontecido e que, dessa vez, não fez jus ao personagem, nem sua iconicidade. Jones mal usa seu chicote, a vivacidade de Ford no papel já não é tão vibrante e o motivo torpe para ser trazido de volta às telonas não convence. Ainda que seja interessante ver Indiana Jones envelhecendo em meio à elvisação dos jovens e tenha Cate Blanchett como a vilã espadachim Irina Spalko, que brilha na sua única sequência de fato usando a espada, o filme se perde completamente, acabando de enterrar a franquia em sua mitologia turva.
Claro, o cinema tem o poder de transformar narrativas em imagens, mas também o inverso. O filme surfa em teorias conspiracionistas que, inicialmente, faziam bem e davam um ar de mistério à franquia. Mas em Caveira de Cristal chegamos ao ápice da proposta imperialista americana: a transformação de culturas e povos não-brancos, nesse caso latino-americanos, em alienígenas. É uma genuína aversão ao reconhecimento de que Incas e Maias eram povos indígenas altamente avançados em todos os aspectos, desde sua complexa arquitetura a estudos astronômicos. Entretanto, como os próprios Estados Unidos fazem, a história de povos pré-colombianos é resumida a seres verdes de cabeças enormes. E o longa se aproveita disso para reafirmar essa máxima ao transformar Machu Picchu em um templo de extraterrestres que vieram ao mundo levar seu conhecimento aos indígenas. É inconcebível para eles que nós somos seres humanos igualmente capazes de terem sua própria cultura, tradições, complexidades, sem apelar para o sobrenatural barato. Até para a própria mitologia maleável e fragmentada da franquia, aliens soa um pouco inverossímil demais. Além disso, qualquer semelhança com o E.T. Bilu e seu bordão “busquem conhecimento” é mera coincidência.
Contudo, o mundo continua e o capitalismo é o mesmo: abraça qualquer causa e movimento pelo lucro. Então não é de se assustar que Hollywood tenha embarcado de vez nesse trend nostálgico. Finais não parecem mais existir no cinema pós-Marvel Cinematic Universe e tudo, absolutamente tudo, pode ser revivido. Homenagens se tornam recorrentes e finais obsoletos, principalmente para sagas que já deveriam ter se encerrado há muito tempo. Spielberg percebeu isso com Caveira de Cristal, em que até sua direção não parece ter o mesmo brilho.
Então, a Disney contrata James Mangold (Ford v. Ferrari, Logan) mais de uma década depois para mais uma aventura. 2023 traz um mix estranho de Indiana Jones que tenta ser politicamente correto e passar o manto para uma personagem feminina, provavelmente porque o Shia LaBeouf, intérprete do filho de Jones, é basicamente persona non grata em Hollywood. Indiana Jones e a Relíquia do Destino (2023) soa como uma tentativa forçada de homenagem ao personagem de Harrison Ford, com mais uma despedida, afinal já tem mais de 80 anos. E isso é evidente quando precisa lutar e atuar na sequência inicial do filme, em que sofre (sim, sofrer é a palavra certa) um rejuvenescimento digital de quase quarenta anos. Com um rosto abonecado e borrado e seu movimento corporal limitado por conta da idade, a farsa ilusória que se propõe é muito mais distrativa do que nostálgica. Em suma, vemos um homem de 80 anos com aparência de 36 tentando lutar.
O filme é uma salada de tudo o que a franquia já apresentou e tenta catapultar isso com a reincidência do neonazismo, lá em 1960, aqui em 2023, para discutir… nada. Relíquia do Destino não traz nenhuma discussão relevante sobre o assunto e nem usa isso ao seu favor, ficando apenas em noções básicas de como os nazistas são ruins. Mads Mikkelsen é desperdiçado com um vilão patético, além de personagens secundários que não possuem o mínimo de carisma. Até mesmo Teddy, como um Short Round reverso, é de dar pena. O longa de Mangold se arrasta com um roteiro baseado em saudosismo que está mais interessado em apontar como Indiana Jones está velho do que saber de que forma suas experiências e aventuras, ao longo de tantos anos, foram de fato transformativas para ele (e para o cinema). A perda do seu filho para a guerra, muito provavelmente a do Vietnã, é apenas uma muleta para que Jones tenha algum arco a percorrer de cura e passagem de manto, mas para sua afilhada, Helena (Phoebe Waller-Bridge).
É interessante também notar como Mangold trata suas cenas de ação com certo desespero em seus vários cortes, numa tentativa de fazer com que sintamos ansiedade e medo pelas personagens em suas perseguições. Porém, isso desvaloriza a principal potência de Indiana Jones: sua fotografia, com blocagem muito bem definida, coreografia, e, principalmente, o tempo diegético da ação. Ele tenta emular a grandiosidade de Steven Spielberg, mas sem conseguir alcançar o mesmo patamar. Talvez as sequências noturnas praticamente impossíveis de enxergar e o uso excessivo de CGI tenham contribuído também. Talvez. O brilho de Spielberg se foi e junto com ele, cenas de ação que respiram e as longas e divertidas sequências de ação, como a do tanque no deserto de Última Cruzada. Extraordinária. Esse ritmo frenético através dos cortes e não da ação em si não parece ser necessariamente uma escolha técnica, mas sim como um sintoma hollywoodiano da necessidade de criação de estímulos visuais para que o público continue engajado a ver cenas de luta que são tão escuras quanto a noite.
O que Relíquia do Destino nos mostra, de fato, é ainda pior do que se imagina. Em mais de cinco décadas, tivemos a oportunidade de experienciar as mais diversas aventuras de Indiana Jones e filmes que lidavam de modo grotesco com culturas que fugiam do alcance das mãos do capital. Desde os asiáticos horripilantes de Templo da Perdição ao massacre indígena por mãos soviéticas em Caveira de Cristal, Indiana Jones sempre foi posicionado como o salvador não só da pátria, mas como do mundo. Em tal posição, é impossível não notar uma franquia que, apesar de algumas pontuações equivocadas sobre envelhecimento, não parece aprender nada. No longa de Mangold, mais precisamente, vemos Indiana ter que depender da afilhada e da ex-esposa para passar por cima de suas questões sem ao menos refletir sobre elas, algo que fica muito claro quando pede para ficar em Alexandra, 216 b.C. “Minha vida inteira está aqui”, ele diz. Mas o longa nunca reflete, de fato, o que o trouxe aqui, em 2023, reforçando todos os estereótipos e arquétipos de seus outros tantos filmes. Não há nada que houvesse de ser aprendido?
Nos “celebrativos” 100 anos da Disney, a empresa se encontrou num mar de fracassos, desde os filmes-padrão da Marvel até cancelamentos envolvendo Star Wars. Nem mesmo suas animações escaparam, com Wish: O Poder do Desejo (Fawn Veerasunthorn e Chris Buck, 2023) tentando trazer seus dias de glória de volta. E Indiana Jones não fugiu à regra. Quando a Disney anunciou sua entrada no mundo do streaming e revelou um catálogo recheado de conteúdos derivados de todas as suas franquias, um crítico apontou que enquanto os concorrentes revelavam apostas para o futuro, a Disney só olhava para o passado. A tristeza é que quando se olha muito para trás, o presente se perde. Nada se forma, nada se aprende, nada se, verdadeiramente, cria. O fracasso de Relíquia do Destino atesta isso em todos os sentidos. Contudo, a distribuição massiva do cinema industrial americano paira sobre o resto do mundo como um dos piores vilões da sétima arte, assaltando para si não somente histórias e culturas, mas também o meio de propagá-las. Se para cada dez cinemas, nove estão sob o manto da Disney, sobra apenas a luta por um espaço que respeite o cinema local.
Com Harrison Ford agora oficialmente para trás, a Disney deveria direcionar seus esforços na busca de contar novas histórias e emocionar o cinema com novos personagens como já fez. Mas como vimos com os recentes anúncios de Frozen 3, Moana 2, Toy Story 5 e, sim, Carros 4, sabemos que os cinemas do futuro estarão inundados de sequências insossas que mais uma vez irão reforçar o caráter imperialista não só da empresa, mas da cultura americana como um todo. Afinal, se o passado americano é realmente cheio de glórias e conquistas, por que não revivê-lo à exaustão?! Ainda assim, ironicamente, o único lado bom de Relíquia do Destino é perceber que, mesmo com o advento de tecnologias “inteligentes”. todo o aparato que o capital pode prover e continuações para lá de duvidosas, não há como replicar a mágica que só Steven Spielberg sabe fazer.