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I Saw the TV Glow

CRÍTICA

Brenno Franca

O filme de Jane Schoenbrun é uma porrada no estômago.

Em 1996, o mundo era bastante diferente do que vemos hoje em dia. Locadoras existiam por toda a cidade, orelhões eram comuns. Grindr, Tinder, dentre outros aplicativos de relacionamentos, nem sonhavam em existir. Fitas de VHS ainda bombavam, cinemas de rua reinavam firmes e fortes. E seriados televisivos, que hoje ainda se encontram em limbos de inacessibilidade, existiam aos montes. É nesse período que I Saw the TV Glow introduz seus protagonistas e a série retratada pelo filme, The Pink Opaque.

Com a história de duas adolescentes que possuem superpoderes, o seriado se torna uma obsessão de Owen (Ian Foreman e, depois, Justice Smith) e Maddy (Brigitte Lundy-Payne). Ambos também estão na pré-adolescência, mas a diretora Jane Schoenbrün deixa claro como eles não se sentem pertencentes à vida que levam. Maddy sofre por gostar de meninas, Owen sofre com o lar abusivo e a não-presença do pai. Sua mãe, o único porto seguro, não demora muito a morrer de câncer.

Schoenbruün cria um clima sutilmente devastador com suas crianças abandonadas que se unem através de Pink Opaque. Algo sempre soa estranho em seus planos, os pequenos momentos de felicidade de Maddy e Owen sempre rodeados de uma energia sinistra, o que é acentuado pela escolha no tom de voz de Smith. Seu Owen é um fantasma dentro de seu próprio corpo, com medo de olhar para dentro de si mesmo. Com medo de viver o que quer, o que ser.

E como não ter? Vivemos um tempo de extinção de direitos humanos que atravessam todas as minorias em prol do “bem” da família. Do que é “certo”. Mas para quem? I Saw the TV Glow nos questiona sobre o que acreditar, se tudo o que Maddy viveu é real ou não durante sua fuga. Ao mesmo tempo, Jane Schoenbrün nos coloca num mundo dolorosamente real que nos sufoca, enterra, cospe e mutila nossos corpos sem o menor pudor. Faz sentido, então, que o mundo que conhecemos na verdade não passa de um inferno torturante criado por um vilão maquiavélico. A fantasia de The Pink Opaque, então, revela-se como a verdadeira realidade, onde podemos ser nós mesmos sem medo algum. Lá, com certeza, o aborto é legalizado.

Uma das sensações de estar no armário, com certeza, foi ter sentido que eu assistia à minha própria vida passar diante de meus olhos. Mas sempre havia algo de errado. Eu não me via completamente porque eu não podia me sentir como eu sou. Como homem, não podia gostar de garotos. Não podia me permitir ter atração por meninos. A diretora consegue encapsular esse sentimento de modo que a quebra da quarta parede feita por Justice Smith ultrapassa a ideia de um floreio ou alívio cômico, colocando nós espectadores como espelho do personagem e vice-versa. Somos o seu confessionário. Seu refúgio. Afinal, quem nunca falou como se estivesse naquela série predileta? Como se nossas narrativas pudessem ser intercaladas por gargalhadas de auditórios e os diretores, em seguida, diriam ‘corta!’ e poderíamos retornar para vidas felizes.

Nunca vemos, de fato, Maddy - aliás, esse não é seu nome -, no mundo fantástico de Pink Opaque. Mas seu monólogo no planetário nos faz sentir cada palavra como uma facada no peito, um desejo de ser dilacerante. Ainda que sua verdade fora alcançada e que tente mostrar para Owen (ou Isabel) que ele não precisa continuar (sub)vivendo daquele jeito, o medo de abraçar mudanças e de todas as responsabilidades que vem com elas num país cada vez mais caótico e rumo ao fundamentalismo religioso é assustador. Tão assustador que a realidade sufocante e esmagadora parece ser a melhor saída, a que Owen e várias outras mulheres trans encontraram antes de dar o grande salto.

Em sua realidade dolorida, num casarão que mais parece assombrado e claustrofóbico, nos planos holandeses de Jane Schoenbrun, Owen se casa. Owen tem filhos. Owen cria uma família. Owen envelhece. Owen vê os anos passando, até que reassistir Pink Opaque (agora via streaming!) não é mais a experiência que o acalentava e fazia esquecer seus problemas durante meia hora. Agora, tudo parecia infantilizado, falso, como as memórias que temos de nós mesmos na infância. Owen continua trabalhando no mesmo lugar há décadas. Owen não aguenta mais. Sufocado, então ele rasga a imagem, rasga a si mesmo para no espelho ver como é por dentro. Como é ser Isabel. Assim, I Saw the TV Glow reafirma seu brilhantismo com seu final desolador, sem oferecer clara resposta ao dilema de Isabel. Mas se a imagem pode também falar, ela nos diz que ainda há tempo. E, para isso, precisamos dilacerar a realidade para que a fantasia possa nascer.

I Saw the TV Glow

22/07/2024 - Por Brenno Franca

Direção

Jane Schoenbrun

Elenco

Justice Smith, Brigette Lundy-Paine, Ian Foreman, Helena Howard, Lindsey Jordan, Danielle Deadwyler, Fred Durst, Conner O'Malley, Emma Portner

Roteiro

Jane Schoenbrun

Ficha Técnica

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