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Furiosa

CRÍTICA

Guilherme Milek

O cinismo com que encaramos Hollywood é capaz de contaminar nossas relações mesmo com os mais honestos cineastas e artistas. Quando Mad Max: Estrada da Fúria (2015) foi anunciado, ainda antes do MCU se consolidar como um monopólio fordista, a notícia foi encarada com receio. À primeira vista era difícil entender o motivo para trazer de volta uma franquia que havia sido encerrada em 1985. Após uma das produções mais conturbadas da história da indústria estadunidense, o filme chega ao Festival de Cannes como um furacão, ressoando não apenas como um dos mais impressionantes projetos de ação já realizados, mas também com um peso cultural inquestionável, elevando à ícone a personagem Furiosa. A co-protagonista de um filme que unia política com entretenimento de alto nível, entregando ao público uma das personagens mais complexas e humanas que um blockbuster podia oferecer até então. Anos depois, o receio retorna quando George Miller anuncia uma prequel de umfilme tão unânime. De transformar a singularidade de Estrada da Fúria num caça-níqueis feito apenas para lucrar. Furiosa, eternizada por Charlize Theron no filme anterior, nos leva de volta ao deserto apocalíptico de Miller contando a história da heroína em novos detalhes, ampliando conflitos que já pareciam bem resolvidos.

Furiosa se inicia com uma das já esperadas perguntas-chave que guiarão o filme: “Enquanto o mundo desmorona ao redor de nós, como podemos superar suas crueldades?”. Para além do impacto direto na narrativa, uma variação dessa pergunta também parece ser o impulso de Miller. Afinal, enquanto a indústria desmorona ao redor de franquias, como é possível superar seu completo esvaziamento e encontrar um motivo genuíno e artístico para contar uma história que todos sabem como termina? O primeiro ímpeto é se retirar da estrutura alucinada de Estrada da Fúria e iniciar essa busca com um épico que atravessa décadas de história e até divisão em 5 capítulos.

Assim como a personagem Furiosa, agora interpretada por Anya-Taylor Joy, busca incessantemente uma vingança que possa compensar toda a violência que sofreu, o filme Furiosa passa 4 de seus 5 capítulos buscando sua razão de existir, sendo constantemente uma ótima experiência que nunca deixa de soar como uma expansão de algo, nos mostrando detalhes de uma vingança cuja conclusão já vimos. Isso muda em seu derradeiro final, quando adota uma natureza mais etérea e onírica, posicionando seus personagens em uma espécie de limbo e passando a listar textualmente porque toda a saga da personagem por vingança é um exercício inútil de se buscar o que é impossível de alcançar. É um momento onde personagem e filme passam a se questionar, com uma lógica que está muito mais próxima de Era uma Vez um Gênio (2022), também de George Miller, do que Estrada da Fúria.

As similaridades entre esses dois projetos aparentemente desconexos não começa nesse momento, é claro. A natureza episódica de ambos os projetos e suas tendências fabulescas já eram aparentes. Assim como a aproximação estética que fugia da natureza mais realista de Estrada da Fúria para abraçar uma artificialidade pitoresca constantemente linda, mas nunca real o suficiente para os nossos olhos. O interesse de Miller em entender porque ele (e nós)somos tão fascinados por narrativas e porque continuamos a querer contar as mesmas histórias, algo que já havia sido tão explorado no supracitado Era uma Vez um Gênio, volta adar as caras no último capítulo de Furiosa.

Ao ser confrontada por Dementus (Chris Hemsworth) sobre a futilidade de sua missão, Furiosa percebe que, de fato, nada que ela fizesse contra aquele homem detestável apagaria seu sofrimento, traria sua vida de volta ou devolveria todos os seus sonhos que foram brutalmente quebrados. A partir dali, Furiosa precisa lidar com uma verdade absoluta: a de que ela precisa encontrar algum sentido que a tire daquela situação onde ela sempre estará presa, é uma questão de sobrevivência. Nesse momento, o diretor precisa encarar outra verdade extra-filme: se já sabemos como aquilo terminou, ele também está em desvantagem em buscar algum sentido para que ele esteja contando novamente essa mesma história. O filme se questiona se a necessidade de uma vingança inútil precisa aparecer.

Um voice-over surge, um narrador conta diretamente para o público de que forma aquela história poderia continuar. Vemos versões variadas da vingança de Furiosa. O narrador, inteligente, pontua que todas essas opções seriam uma grande frustração, e então nos oferece uma outra solução, onde a vingança jamais seria consumada, e sim transformada, dando frutos às novas histórias através da vida que floresce das entranhas de Dementus. A sua força vital é realocada para uma macieira plantada por Furiosa acima dele, a mesma árvore onde ela colheu no início, logo antes de ser capturada e ter sua vida destruída.

É uma parábola bíblica, a transformação de um anjo vingador, da quinta cavaleira do apocalipse, numa nova criatura. Furiosa é meio-mulher, meio-homem, meio-máquina, cuja história eventualmente remonta a contos tão antigos quanto a própria humanidade. A mulher que come a maçã pode dar início à destruição, mas também ser agente de criação. Em vários momentos, o filme traz simbolismo visual religioso ao redor de Furiosa, mas no final, George Miller a transforma em uma figura mitológica. E as maças servidas às mulheres enclausuradas por Immortan Joe agora soam como um aperitivo da revolução que ela prepara por vir em Estrada da Fúria.

Apesar de estar subentendido que essa é a versão da história correta, isso nunca é efetivamente apontado pelo narrador como uma verdade absoluta. Pois alguém apenas contou para ele que isso tinha acontecido, e dessa forma, todas as opções para um final seriam válidas. O público pode escolher acreditar que um tiro resolveu essa saga de décadas, caso não quiser acreditar na opção mais fantástica apresentada. A escolha por essa pluralidade de possibilidades narrativas poderia soar como uma falta de decisão sobre como lidar com a previsibilidade que pontua a existência desse filme. No entanto, é uma decisão que revela algo muito mais fascinante e pessoal sobre George Miller: sua necessidade de fazer filmes, e o que faz deste aqui único e essencial.

Mad Max é uma franquia que existe há 45 anos, iniciando-se em 1979 e se estendendo até 2024, ou seja, cinco décadas de história. Ao longo dessas décadas, Miller tem contado sobre o fim do mundo, falta de recursos, falha do capitalismo, e como a humanidade lidaria com isso quando inevitavelmente acontecer. O quinto capítulo de Furiosa essencialmente examina porque essa história continua sendo contada por ele. Se a resposta for que ela pode ser um presságio sombrio do que virá, ela também pode ser um agente de mudança. George Miller continua voltando a esses temas porque acredita em possibilidades, que uma fábula tão horrível e frustrante quanto a tragédia de Furiosa pode ser vista sob uma nova ótica. Uma história que pode ser transmutada e deixar de significar o fim pra se tornar o começo de algo novo. Basta acreditarmos nas possibilidades como ele acredita e, talvez, um novo caminho surja a partir delas, assim como Furiosa fez com suas maçãs.

É um clímax silencioso que me impactou como poucas coisas no cinema recentemente, pois desmonta mais uma vez o cinismo com que encaramos (e aqui me incluo) esse ciclo eterno de remakes e reboots. Furiosa mostra que eles podem sempre nos revelar algo novo contando histórias que já conhecemos. Só é preciso alguém fascinado o suficiente com a importância de narrativas e sua capacidade transformativa no mundo. Furiosa já era uma personagem símbolo de um momento cultural de Hollywood, agora ela também é um mito, a possibilidade de transformar tanta dor e sofrimento na criação de um futuro diferente. Enquanto o mundo desmorona ao redor de nós, como podemos superar suas crueldades? Buscando recontar o velho de uma nova forma. Quando o caminho parecer sem volta e nosso esforço inútil, talvez ainda haja esperança de uma revolução. Que sentimento mais lindo e empolgante para se ter vendo um filme sobre o pós-fim do mundo, especialmente se vem acompanhado das cenas de ação mais insanas que alguém pode conceber.

Furiosa: Uma Saga Mad Max

28/05/2024 - Por Guilherme Milek (Revisado por Brenno Franca)

Direção

George Miller

Elenco

Anya Taylor-Joy, Chris Hemsworth, Tom Burke, Alyla Browne, George Shevtsov, Lachy Hulme, John Howard, Charlee Fraser

Roteiro

Nico Lathouris, George Miller

Ficha Técnica

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